Amuleto profiláctico eminentemente masculino (apenas usado por homens), contra feridas (produzidas por arma branca ou de fogo), promotor da invulnerabilidade (contra golpes de armas brancas) e sucesso do seu utilizador (jogos de azar, amor de mulheres-damas, etc.). Quiçá originário do Mali, onde os mandingas ou malinkes usavam ao pescoço amuletos sob a forma de pacotinhos contendo pedaços de papel com versículos do Alcorão ou sinais cabalísticos. Talvez introduzidas em Portugal por escravos africanos islamizados, as bolsas de mandinga, seriam, depois, adoptadas pela população negra banto (Congo e Angola), bem como pelas demais comunidades africanas e até pela população europeia (no Reino, no Brasil e no restante império português), surgindo amiúde citadas em processos inquisitoriais e denotando a ampla difusão de uma religiosidade sincrética luso-afro-brasileira. Tais bolsinhas serviam igualmente “para livrar de perigos em pendências” de tribunal, conforme testemunhou Miguel Gomes de Moura, nos interrogatórios do processo de Catarina da Silva. Embora variável, o conteúdo das bolsas de mandinga revela características mais ou menos recorrentes. Por regra confeccionadas com pano, quase sempre branco, continham obrigatoriamente: fragmentos de pedra de ara; pequenas tiras de papel (*filactéria ou *nómina) com figuras, letras ou com a oração de *São Marcos (escritas com sangue de frango ou do próprio portador da bolsa); *hóstia; pedra de corisco; enxofre; balas de chumbo; vinténs de prata; pedacinhos de osso de defunto; etc. Alguns destes componentes tinham de permanecer enterrados durante algum tempo, antes de colocados na bolsa, enquanto as orações haviam de ser mantidas durante vários dias sob uma pedra de altar, sem o que não adquiriam o poder que o sacrifício da missa lhes conferia. As Constituições do Bispado de Lamego, de 1683, censuram todo aquele “que traz nomes, orações ou palavras escritas ao pescoço, crendo que por sua virtude nunca será ferido na guerra, ou em brigas, ou que não morrerá em fogo nem afogado, ou de morte súbita e que tudo lhe sucederá prosperamente”. Durante o século XVIII, alguns mandigueiros foram processados pelo Santo Ofício por venderem tais bolsas a uma clientela pertencente aos mais distintos extractos sociais, a qual acreditava que, usando-as, ficaria com o “corpo fechado”, protegido contra qualquer espécie de inimigos. Em Évora, no ano de 1716, um homem pardo abjurou “por pacto com o demónio e pôr o peito descoberto sobre a ponta de espada nua, lançando-se sobre ela com força, sem se ferir fazendo outras cerimónias vãs e supersticiosas para não ser ofendido com ferro nem com balas” [BN: cod. 864, fl. 302v]. Laura de Mello e Souza considerou o uso de bolsas de mandinga a “forma mais tipicamente colonial da feitiçaria no Brasil”. Patrício de Andrade, negro forro de 25 anos, saiu no auto da fé da Inquisição de Lisboa, de 27 de Junho de 1690, por presunção de pacto com o diabo. Costumava trazer consigo certos objectos dentro de uma bolsa (de mandinga) para não ser ferido com armas e fazer experiências no próprio corpo para demonstrar o dito efeito (cf. Adolfo Coelho, Costumes e crenças populares). São idênticos inúmeros outros casos que seria fastidioso elencar, neste contexto. São, todavia, de excepcional interesse os processos instaurados pela Inquisição, em 1731, a José Francisco Pereira e a José Francisco Pedroso [ANTT: inq. Lx, proc. 11767], ambos naturais da costa da Mina, uma vez que reproduzem algumas orações com desenhos, em parte, traçados com sangue de frango, apreendidas aos réus, as quais eles usavam nas bolsas que confeccionavam.
Orações usadas por José Francisco Pereira numa bolsa de mandinga [ANTT: Inq. Lx, proc. n. 11767]
Bibliografia: BERTOLOSSI, Leonardo Carvalho, A Medicina Mágica das Bolsas de Mandinga no Brasil, séc. XVIII, in Usos do Passado – XII Encontro Regional de História, Rio de Janeiro, Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, 2006; CALAINHO, Daniela Buono, Metrópole das Mandingas: religiosidade negra e Inquisição portuguesa no Antigo Regime, 2000 [tese de doutoramento em História, na Universidade Federal Fluminenese]; idem,Jambacousses e Gangazambes: feiticeiros negros em Portugal, in Afro-Ásia, n. 25-26 (2001), p. 141-176; idem, Africanos penitenciados pela Inquisição portuguesa, in Revista Lusófona de Ciência das Religiões, a. 3, n. 5-6 (2004), p. 47-63; LAHON, Didier, Inquisição, pacto com o demónio e “magia” africana em Lisboa no século XVIII, in Topoi, v. 5, n. 8 (Jan.-Jun. 2004), p. 9-70; MOTT, Luiz, Cotidiano e vivência religiosa entre a capela e o calundu, in SOUZA, Laura de Mello e (org.), História da Vida privada no Brasil, v. 1, São Paulo, 1997, p. 200; PAIVA, Eduardo França, Pequenos objectos, grandes encantos, in Nossa História, a. 1, n. 10 (Ago. 2004), p. 58); SOUZA, Laura de Mello e, O Diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil Colonial, São Paulo, 1996; VAINFAS, Ronaldo, Mandinga, in Dicionário do Brasil Colonial (1500-1808), Rio de Janeiro, 2000
Fragmento do livro AMULETOS da Tradição Luso-Afro-Brasileira de Manuel J. Gandra